quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

As Revoluções e o Cristianismo

Pensando em temposQuando se fala de revolução a primeira coisa que se pensa é em algum tipo de revolução socialista, como a soviética ou a cubana. Porém, há uma outra revolução que pode ser considerada, de certo modo, a mãe das idéias revolucionárias socialistas: é a revolução industrial. As transformações geradas pela produção industrializada foram tantas e tão profundas que mudaram radicalmente a face da sociedade. Nenhuma sociedade que tenha passado pelo processo de industrialização o fez incólume.

Para começar a produção em larga escala gera a necessidade de mão-de-obra abundante e barata, além de um consumo tão amplo quanto a escala de produção. Estas necessidades são antagônicas, se uma parcela substancial da sociedade está trabalhando muito e ganhando pouco, obviamente não terá recursos para consumir. Logo, a produção, em escala cada vez maior, tem que ser enviada para fora da sociedade que a produz, de onde deve vir a matéria-prima para alimentar esta mesma produção. O que cria um sistema imperialista de relações exteriores das nações industrializadas, que, por seu turno, estabelece relações cruéis de dominação, associadas a uma divisão de recursos excludente em escala planetária e, em última instância, duas guerras mundiais.

Se, do ponto de vista externo as conseqüências da industrialização são perversas, internamente não é muito diferente. As atividades agrícolas tradicionais sofrem dois tipos de alteração. Primeiramente, há a mercantilização da produção agrária, que se volta, em grande medida, para atender as necessidades da produção industrial. O caso da Inglaterra é bastante expressivo, pequenos cultivos foram substituídos por rebanhos de ovinos, que forneciam lã para a indústria têxtil. No Brasil do século XX, temos o desalojamento de cultivos alimentares para dar lugar ao café, à soja e à laranja, exportados para as grandes indústrias alimentícias. A outra alteração é a transformação das relações sociais no universo rural. Sendo derivada da primeira, esta segunda gera um corolário benéfico aos que manipulam o sistema como um todo, a geração de excedente de mão-de-obra nos distritos industriais.

Voltando à Inglaterra do século XVIII, as transformações de que falamos implicam no que se chamou de “cercamento dos campos ou terras comunais”, isto é, as terras que eram cultivadas por grupos camponeses pobres passaram a ser administradas privadamente por grupos abastados. Isso redunda em êxodo rural, que incha as cidades, criando e mantendo uma farta reserva de mão-de-obra, o que mantêm os salários em queda quase permanente. No Brasil, temos um fenômeno algo semelhante. Nas da década de 1950 até a de 1970, recorrentes crises da pequena agricultura, privada de recursos emergenciais do erário, escoados em quase sua totalidade ao amparo de grandes latifúndios e do agrobusiness, somadas à expedientes como a grilagem (falsificação de títulos de propriedade de terra) e à truculência, empurrou toda uma geração para as cidades, engordando os bolsões de miséria das principais capitais e oferecendo mão-de-obra de baixa qualificação, mas com baixos salários.

Daí chegamos às idéias revolucionárias: a pauperização dos trabalhadores urbanos no século XIX é um fenômeno presente em praticamente toda a Europa ocidental. As multidões de operários de olhar vazio e andar compassado atravessavam as grandes cidades todas as manhãs e nos finais dos dias. Essas marchas um tanto horrendas, não passaram desapercebidas aos principais intelectuais. De poetas a políticos, muitos perceberam que a pobreza excessiva estava se tornando uma chaga aberta nas cidades. Os pensamentos revolucionários surgiram da observação do sofrimento dos pobres, associado a um pessimismo em relação às iniciativas de distribuição de renda a partir dos ricos, que naquele momento esfolavam seus trabalhadores até o desespero. Um pessimismo não de todo infundado, uma vez que os donos das fábricas impunham jornadas de até 16 horas diárias, a salários tão baixos que os pais tinham que por seus filhos de 7 ou 8 anos de idade para trabalhar, já que seus salários não cobriam os gastos das crianças.

É possível dizer que o pessimismo de que falamos, associado a um sentimento de indignação e a uma perspectiva fatalista e teleológica da história, tenha gerado movimento revolucionário pautado na violência. Karl Marx foi um dos principais expoentes deste tipo de solução. Sei que falar de Marx é um tabu dentro da esfera católica, mas me parece que Marx estava movido pela ideal correto, o da igualdade entre os homens. Embora estivesse apontando para a solução errada, a violência, estava movido por uma certa dose de compaixão pelo sofrimento do próximo. Por isso, creio que uma das virtudes destes pensadores do século XIX e de seus seguidores no século XX é a de pensar para além de si mesmos. A opção por um projeto coletivo de mundo, presente nos ideais da juventude até a década de 1970, contrasta com o que parece ter sido a vitória da Revolução Industrial. Explico-me.

A ânsia de consumir também é uma resultante de um dos principais subterfúgios da industrialização: a propaganda. A propaganda é o instrumento que tem como objetivo nos fazer consumir além das nossas necessidades, na verdade, a propaganda cria necessidades. A vitória da Revolução Industrial está na perda de nossos critérios coletivos, as decisões da maioria hodierna são pautadas em critérios exclusivamente umbilicais. Nós, salvo gloriosas exceções, só nos preocupamos com o que é de nosso interesse imediato, o que equivale dizer que o individualismo chegou ao seu ápice em nossos dias.

Perdemos todos, ateus e cristãos, a visão de uma sociedade mais justa. No máximo entendemos a necessidade de atos de solidariedade, mas perdemos do nosso horizonte a possibilidade de uma sociedade em que a solidariedade seja menos urgente. Em que esta não seja a única possibilidade de sustento de uma grande parte da população mundial. A desigualdade está a tal ponto naturalizada, que sequer pensamos mais seriamente em por fim a ela. Essa não é uma conversa de socialista démodé. Os documentos da Igreja, como a Rerum Novarum, falam na redução do abismo entre trabalhadores e patrões através do senso de justiça dos últimos para com os primeiros. Não é caridade, é justiça social.

No Brasil, onde a questão social até bem pouco tempo era caso de polícia, a Igreja esteve envolvida nas últimas décadas em defesa de uma sociedade mais humana. Desde os movimentos contrários à tortura no regime militar até o apoio às lutas dos trabalhadores, a Igreja esteve presente, seja com as missas em manifestações, declarações de autoridades, ações concretas, campanhas da fraternidade, toda uma série de elementos que mostraram que a Igreja não está apenas envolvida na construção de um mundo mais cristão, ela está comprometida. No livro O Monge e o Executivo há uma definição interessante para a diferença entre estar envolvido e estar comprometido. Numa refeição de ovos com bacon, a galinha foi envolvida e o porco comprometido.

Me entristece o péssimo hábito que adquirimos de jogar fora, após o banho, a bacia, a água e a criança. Abrimos mão de uma experiência riquíssima de compromisso com a concretização do Cristianismo no mundo, apenas por poder ser rotulado de “Teologia da Libertação” ou de marxismo, ainda que esteja dentro da Doutrina Social da Igreja. Não temos, no entanto, o mesmo receio de ver estimulado o egoísmo e a egolatria, apesar de poder ser classificado de “Teologia da Prosperidade”. Em ambas as “teologias” encontram-se erros, exageros e equívocos – alguns até as tornam incompatíveis com o Evangelho –, a bem do que se possa aproveitar de positivo, mantemos a mania de jogar fora a criança e a bacia junto com a água.

Sei que muitos torcem o nariz para textos que tratam de temas tão desagradáveis, como pobreza, sofrimento, luta por um mundo melhor, talvez preferissem um bom informativo sobre as novidades tecnológicas ou a moda, ainda que não possam adquiri-las. É, sem dúvida, mais atraente a propaganda de celulares que fazem coisas das quais poucos realmente necessitam, mas que causam a satisfação de um ego hipertrofiado. Que Deus nos conduza à virtude da empatia pelo sofrimento alheio, para que nos constranja mais o personalismo que a busca por uma sociedade mais cristã.

Carlos EngemannCarlos Engemann possui graduação com distinção acadêmica Magna cum Lauda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000), mestrado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002) e doutorado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006). Atualmente é professor da Universidade Salgado de Oliveira e professor titular do Instituto Superior de Teologia do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Império, atuando principalmente nos seguintes temas: escravidão, antropologia histórica e métodos quantitativos. É autor do livro “De Laços e de Nós”.

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